
GÊNESIS
Minha mãe,
Nasceu numa praia quase desconhecida.
Meu pai veio do sertão das matas.
Ela, em alguns momentos, traz a noroestada nas ventas.
Ele sempre acompanhado da sabedoria da terra.
Eu nasci com o fogo
Para não esquecer de queimar o barro de minha origem.
Origem - Jefferson Barbosa
Criar a página ALUMIADO é abrir minha caixa de Pandora fazendo com que eu liberte minha esperança, trazendo luz para as minhas "benditas" mazelas. É reanimar a chama de meu peito, bater um papo com Deus, mesmo em meio a noites sombrias. Poder compartilhar com quem aqui visitar, remexer, gostar, discordar, se inspirar na minha “alumiação” através dos meus processos criativos, experimentações, angústias, dúvidas e conquistas.
Venho da composição do mar e da montanha. Desse encontro de meu pai, nascido no sertão, e de minha mãe, nascida na ilha, vim eu, de raízes caiçaras, de Angra dos Reis. Desde pequeno a imagem faz parte do meu cotidiano. Lembro-me na infância pedir a minha avó, mãe de minha mãe, para apoiar-se na vitrola e, com um papel na mão, desenhá-la ou pintar as casas de formigas na entrada da porta de minha casa. Com minha avó paterna eu brincava de teatro ao pegar os seus santos de devoção e fazer minha procissão pelo sobrado, enquanto meu avô fazia o som dos sinos e soltava fogos pela boca. Mais tarde, na adolescência, encontrei-me no Grupo Teatral Revolucena, com o qual expandi minha alma para a arte. Foi aí que aprendi o ofício de fazer artesanalmente os meus sonhos e construir minha grande família. Sim, sou filho único!
Depois saí de Angra e tornei-me carioca com mais de 30 anos de Rio de Janeiro. Da formação em Artes Cênicas, pela Unirio, para direção de peças infantis, direção de shows, nascimento do meu palhaço Catavento, trabalhos plásticos, incluindo cenários e criação de oratórios, oficineiro, fundador do Bloco Carnavalesco Infantil Gigantes da Lira, tudo aliado ao trabalho de professor de artes. Já a arteterapia se deu pela busca mais terapêutica no campo das artes.
Muitos questionamentos, frustrações, dúvidas, realizações estiveram e estão ao meu lado. Ainda bem! São trajetórias de conquistas que agradeço pelas oportunidades e superações. Um trilhar de liberdade e criatividade que aqui compartilho.
MAIO, 2024.
PARA A ÁRVORE DO TEMPO



JUNHO,2022.
UMA CANTILENA PARA VIDA
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Há exatos dois anos e mais alguns meses sem abastecer o Alumiado. Este ano tocou-me uma sensação esperançosa da vida, após ter sido arrastado ao lodaçal, na sua roda contínua do simples viver, obrigando-me a escolher caminhos para continuar a jornada. Parar e nem o descanso eram vias de opções. Até poderiam ser, mas aí eu não poderia esperançar. Minha família em novos corpos que eu não queria enxergar, dando sinais e sendo sutilmentes transformados no cotidiano. Não carrego a culpa ou o egoísmo, mas a natureza humana. Ali assinei o meu pacto de entrar “de fato” nesse espiral, já que eu não tinha mais os pés plantados no chão. Foram dias de muitas, muitas e muitas incertezas. Medo? Muitos. Dores? Muitas. Tudo era muito, menos o sorriso que era parco. Mas veio também em alguns momentos. E a vida foi me ofertando pessoas para que o sentido da cura se fizesse presente. Aceitei e agradeci. Prometi a mim não me rebelar, culpar a vida apenas por ela está sendo o que sempre foi: contínua. Leveza era o substantivo, a figura feminina, a potência da Mãe embalado ao seu colo que eu não tinha. Não do jeito poético que gostaria, mas de alguma forma ela estava ali me exigindo coragem e fazendo vê-la em carne. E assim fui sendo comido pelo seu fogo, rasgando minha pele, sentindo minhas feridas e curando-me. Vivendo minha história diante aos dois que me deram o sopro da existência, nos amparando, nossos estreitando, libertando das amarras e tramando novos desenhos através da compaixão, da benevolência, da paciência, da aceitação e do amor. Esperançar queria ser a quimera alcançada. Antes, ainda era preciso ser devorado e costurar uma nova pele. E a humanidade tragada por uma nova pandemia, nos afastando, isolando de quem tanto são nossas riquezas e forças. Mas, a Mãe também soube ser generosa e acolhedora. Sempre disse que sou filho único e que minha família foi com a construção do meu companheiro da vida, dos meus companheiros escolhidos e vividos intensamente na vida e dos elos que me ajudaram a me sustentar e a criar novos olhos para a vida. E assim, aos poucos, vou criando essa nova pele até deparar-me com “ela”, novamente, para mostrar-me mais uma sabedoria de que viver vale a pena. Adeus Silzelda Leonides Barbosa! Obrigado pela coragem Gilberto do Rosário Barbosa! Um relato de um vivente que sonha com a vida.

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FEVEREIRO, 2020.
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PASSANDO MANTEIGA NO PÃO COM O DIABO
-Um CONTímido-
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Finalmente Mia conseguira vir no hiato entre dois abortos. Ele veio por teimosia de sua mãe e de sua insistência em chegar àquele sobrado onde ficou parte da infância, sendo o seu mundo aquele pedaço de chão que se estendia da porta de entrada até ao meio fio da rua. Seu amigo era um pé de carambola que morava na mesma rua, atrás do muro que escondia um quintal. Ali, junto com os netos do casarão, corria por seus labirintos que eram apenas corredores cimentados que mais lhe parecia uma estrada sem fim. A cidade era pequena, as famílias conhecidas, e atravessar de uma bairro para outro era uma viagem a ser programada. Seus pais eram jovens e já haviam navegado por algumas torrentes, procurando manterem-se seguros no equilíbrio das suas bússolas. Sabiam que os sonhos os levariam para o alto-mar, como Nossa Senhora da Conceição acompanhada por cavalas, mas que na proximidade da "noroestada" haveria o porto erguido entre eles para enxugarem seus corpos frios e, algumas vezes, machucados. E assim, a cada nova estação tudo prosseguiu, trazendo para o corpo o desenho navegado da vida. Mares singrados e suas riquezas. Hoje, jazem velhos como uma embarcação alquebrada num fundo de baía solitária com seus tesouros carcomidos pelo tempo. Agora é Mia a arrastar as caixas empoeiradas das lembranças e arrumar as louças em volta da mesa com o diabo a ensinar-lhe a passar manteiga no pão. Dos seus olhos nasce o oceano que ele tenta não se afogar, sabendo que AMARCURA.



JANEIRO, 2020.
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PEIXE NÃO TEM RAIZ
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Ao sentar na escada que dá acesso a casa de meus pais, olho para o alto e o céu está serpenteado de pipas que mergulham sob a serra do mar. Chegou as férias! Chegou o verão! Chegou o Novo Ano! O Alumiado esteve meses sem seus escritos devido aos seus processos de conhecimento, transformação e ressignificação da vida. Antes da desova temos o momento da incubação, e foi aí que a vida me pediu esse tempo. As ideias se formavam como ondas que agora voltam a quebrar suavemente no decorrer do texto. Porque nascer é um ato de rebeldia. Viver um ato revolucionário. Conviver já é um ato político. E Renascer, uma ousadia. Escolhi o titulo da postagem de janeiro após assistir o show da cantora Bárbara Castilho. Durante uma composição sua com outra angrense (todas duas da nova geração de filhos dos amigos), e que foi feita a partir de frases e palavras soltas nos lambes lambes que espalhava Cecília, filha do músico e maestro Moacir Saraiva, pela cidade; juntei a frase ao cardume das lembranças que crescia ao ver os "peixes da terra" - família Valverde com a matriarca Wenny, Fátima Castilho, P.C. Castilho, João Luís, Carlinhos Rabha, Renato Dias, Luciana Telles, Marcelo Ramos, e muitos, muitos outros. Quanto havíamos navegados e, ainda, continuamos a navegar na imensidão dos mares da vida. A Casa da Lua, espaço cultural do sempre inquietante e multifacetado Zequinha Miguel, e que volta o ocupar o outrora Dendeco"s Bar, palco de muitos shows e encontros de minha adolescência. Sim! Somos um ato político por gostarmos de conviver, por sermos resistência na cultura, nos direitos humanos, no bem-estar da cidade e de quem vive e a visita. Como não mergulhar mais fundo nas reminiscências e trazer à tona: Teatro Já no Galpão da Ovar; o resgate da Festa do Divino; a vigília da Casa da Cultura; o fechamento da Rio-Santos contra a Usina Nuclear, com o Hiroshima Nunca Mais; o Serra-Serra Serrador; e tantas outras. Assistir ao show da "Bá", filha da Sonia Valverde e um pouco do Revolucena, é se orgulhar em remexer nossas águas ao encontro de Angra e da nossa Arte. Ouvir o Zeca falar apaixonadamente de Angra, com a pulsão criativa que ele tem, junto do Chiquinho, Cajê e Zane, na praça do Mercado de Peixe, é sentir o vento embalando as ideias e sonhos. Estão sendo assim os meus dias na terra de minha infância. Um peixe que retorna ao seu recanto, mas não preso, solto a nadar no vai e vem das histórias que viveu e estão por vir.
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Trabalho realizado com a Educação Infantil em 2010.
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OUTUBRO,2019.
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EXÍLIO
Hoje fui à casa de meu pai.
O mar estava tranquilo e de longe
Avistei sua morada na praia.
Seus filhos descansavam nas árvores
Pintados e ornados com penas coloridas.
Meu pai arrancava frutos suculentos
Que ao morder escorriam-lhe pelo canto da boca deixando amarela a barba.
Com docilidade sorria para as crianças
Que deitavam a rir na areia.
Acenei para ele.
Assustado
Correu junto de seus filhos para o interior da mata
Com receio que a historia voltasse a repetir.
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Foto: João Emílio Fernandes.
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Trouxe estes poemas de 2007 quando iniciei meus escritos, eles carregam fantasia e um pouco de minha história. Lembro-me que ao fazê-lo estava com a imagem de Paraty Mirim, praia no litoral sul do Rio, que carrega ainda uma vila caiçara. Na época era um local pouco frequentado e que me tomou com a sensação de começo da vida, e aquele rio no meio da praia como um caminho para o útero da terra. O útero que tem sido violentado com o crescente aumento das queimadas nas florestas e dizimação de seus povos me fez pensar no Exílio e Essencial como a salvação de Deus, e não a nossa pela mão de Deus, dos Deuses ou dos Não-Deuses. A nossa se dará quando enxergarmos o Deus, os Deuses ou os Não-Deuses do outro na gente
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ESSENCIAL
É noite.
O breu vai se espargindo,
Adentrando toda cavidade
Que ampara qualquer claridade.
Tomado pela escuridão
Das horas adiantadas,
O mar adentra a boca do rio
Tornando-se matriz
Para tudo o que encontra.
Ao primeiro clarão da manhã
A água retorna.
Agora, mãe.


JULHO, 2019.
CICLOS D'ÁGUAS
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Mar turvo e eu turvo também. Bom para compreender os nossos ciclos d'águas e deixar os redemoinhos de fúria, dor, tristeza, silêncio, medo, vir à tona em espiral e se perder em sua intensidade. Ventos eram intermitentes como brancas espumas se equilibrando nas ondas, como o sol que queria ser outonal e como as minhas vértebras teimavam em sentir o calor dos pequenos compostos que formavam a areia. Caminhei lento sem que os humores gosmentos e aquosos ficassem agarrados entre os galhos ou sinalizando os caminhos que tinha percorrido. Não havia força. Não havia luta. Não havia haver. Não havia ar. Tudo era mar. E, eu-água, eu-transparência, eu-vazante e eu-cheia. Sentado no último banco da embarcação sem passageiros, sinto atrás de mim o barqueiro tentando domar o desalinho das marés. Eu já não tinha mais o que aquietar.
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JANEIRO, 2019.
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CASA
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Casa é sempre ninho.
Lugar de sabor, textura, cheiro e cor.
E, pode ir do magenta ao cinza chumbo.
O que importa é que quando olho
para a panela da vida, sinto o perfume
dos temperos que venho misturando
ao longo da minha existência.
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Aproveitando as férias de janeiro, tirei alguns dias para ficar com os meus pais. Foram dias de boas risadas e sabores à mesa, apaziguando algumas sombras que teimavam em se mostrar diante da minha cara, trazendo o tempo real da proximidade da finitude. O melhor foi conversar com elas com bom humor e aceitar que estou na mesma estrada, e que não preciso caminhar mais solitário. Assim foi feito! Dialogamos, rimos da vida e com vida. Quem acompanha o Alumiado já conhece um pouco das minhas raízes e do meu jeito de pensar. Cada dia sinto mais a força da minha natureza. Como já disse, venho da mata e do sal, de uma família simples, de poucas letras, de muito trabalho e de muito respeito. Como procuro fazer, fui atrás dos meus sons e vazios.
Fiquei frente ao mar, na imensidão de Iemanjá, no embalo da mansidão das águas, e com o pensamento a navegar iniciei o relato que transcrevo agora sobre o meu ninho, as horas vividas na casa dos meus pais, com minha mãe e meu pai, nossa força, nossos medos, nossos fantasmas e nossa fé. Descansando na rede, minha calmaria transformou-se em ondas que quebravam com força. Cardumes agitados de pensamentos turvaram minhas águas. Emergiram meu histórico, minhas passadas, meu círculo, profissão, sonhos e crenças. Escancaro a boca e as narinas para que o oxigênio percorra por meu corpo como alimento sagrado do ato de viver, e a trazer-me garra para afastar a densidade opaca e macilenta que se aproxima, como uma peste, procurando exterminar o originário. O céu pontilha, novamente o mar volta a ser o seu espelho e volto a balançar-me como já fizeram os meus avós, os pais de meus avós em suas terras de chão batido ou cobertas de areia.â
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SER
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O sol está alto e vigoroso
O mar com as águas verdejantes
A praia com sua areia fina
Como a farinha que acabo de torrar
E me cobre o corpo.
Quem sou eu?
O que é Deus também
Igual ao Deus que nele habito.
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OUTUBRO, 2018.
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AS ÁGUAS SAGRADAS.
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Estou tendo a permissão e o privilégio de acompanhar e viver o nascer e o florescer do chão de roça sagrado de uma grande querida amiga. Foi através dela que compreendi e vivenciei rituais tão potentes das forças da natureza, explodindo em luzes e cores as naturezas de seus irmãos. Agora a sua terra sendo revolvida, se abrindo em caminhos com o barro batido, para os devotos que trazem na alma a reverberação da matriz africana. Uma parte da nossa história tão vilipendiada e aviltada por séculos de preconceitos, intolerâncias e violências, num país com mais, muito mais, de 500 anos, e que ainda não conseguiu enxergar e aceitar suas matrizes. Seguimos apenas o padrão europeu, procurando diminuir e/ou apagar nossos troncos: indígena e africano. Desfazer o embaçamento de nossa formação é fazer-nos inteiro, despertando e potencializando nossa sagrada identidade. É reconhecer em nós a força mítica de nossa ancestralidade. Assentir nossa brutalidade e ferocidade ajudará em nossa transformação e iluminação como seres com mais compaixão, vislumbrando a justiça social e fraterna. Deixar gritar o som que vem das florestas! Deixar gritar os elementos da natureza! Fazer ouvir-se e enxergar-se em nossa centelha epifânica. Que o chão de sua roça, de sua casa, cresça como a força de Irôko. Que Iemanjá, sua mãe e de todos, continue derramando suas águas sagradas com toda afetividade, justiça e prosperidade, bem como, toda a plêiade de orixás. Todo o axé ao chão da roça da Casa Ilé Asè Ya Omin Orun!
CONTAS COLORIDAS
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Sentada na esteira de palha
No chão de terra batida
A menina morena com seu prato de contas coloridas
Fia sua guia
Igual as águas transparentes
Que do seu rosto luzem.
ABRIL 2018
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A Gênesis é algo que foi e que também é hoje, para amanhã juntar-se aos retalhos da memória, e assim vou costurando essa grande colcha da vida. Durante as férias uma das pessoas que cercavam meu quintal da infância apareceu. Lembro-me dela sentada em casa de vó, conversando com seu riso aberto, enquanto nosso almoço estava sendo preparado com o espocar do peixe fritando e com os temperos do feijão, que já havia sido catado, colocado na peneira sob o sol e agora apurava o sabor. Lá na casa de vó era assim. Hoje em dia já não existe mais vó, nem sua casa, mas tive notícias de sua comadre, ainda viva. Também hoje, novas memórias vão sendo acrescentadas e reavivadas às diferentes padronagens que compõem a minha colcha. Dessa vez, fico com as histórias e o gosto do sobrado da casa da mãe de meu pai, minha avó Rosária, e sua comadre.
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Dona Teresa, Comadre de Vó
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Dona Teresa era comadre de vó
Sempre com sorriso a correr estrada afora
E com histórias que até os gatos
Aninhavam aos seus pés para ali ouvirem.
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Um dia fui visitar Dona Teresa
E o sol alto era todo felicidade
Enquanto ela cantava entre as águas
Com as roupas brancas a quarar.
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Hoje não tenho mais Dona Teresa
Nem sua estrada, nem suas histórias
Mas o sol sempre reflete nas águas
As cantigas da comadre de vó.
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Histórias Quentinhas
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Vó sempre foi franzina
Mas firme como graveto na tempestade.
Difícil de entortar!
Lá está ela
Com sua barriga grudada
Na boca do fogão à lenha.
Estou do outro lado da mesa
Enquanto ela conta histórias quentinhas
Que misturo ao meu leite.
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JUNHO, 2018.
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Aqui estou diante ao meu início, suas mãos equilibrando o tempo e os seus olhos na busca das poucas estrelas que a memória teima em apagar. Ela sempre teve a personalidade forte, “briguenta”, para conseguir traçar seu rumo e enfrentar os fantasmas.
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REDENÇÃO.
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Minha mãe
Carrega as dores de Cristo
Com ela.
É pura tristeza
Debaixo do véu.
Sem perceber que o riso
É sua redenção.
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Mas nem tudo foi uma batalha, houve momentos de serenidade igual uma canoa solta na mansidão. Agora, aprendeu a jogar-se da embarcação, e ao sinal de um vento forte a nadar entre as ondas; ensinando-me, assim, enfrentar meus tortuosos mares.
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ANTROPOFAGIA
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O tempo engolindo seus segundos
Enquanto as horas vão engordando.
Tempo puxa-puxa,
Tempo em calda,
Tempo doce.
Mastigo minha infância em açúcares,
Mastigo a vida em dor e paz,
Mas não deixo de prová-la.
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Hoje já é ninho, mas aninhar-se é um delicado pouso em seus fracos braços. Sentir minhas transformações é saber que em breve já não terei a beleza de sua imperfeição, como um Wabi-Sabi. A cada sinal escavado na linha dos nossos rostos é o firmamento do meu amor.
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VIDA
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A criança solta
Corre deixando grudado ao corpo
Carrapicho, sol e Deus.
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DEZEMBRO, 27/2017.
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Hoje minha gênesis brinca com a brisa, com meus momentos de fé e diálogos com a natureza, e com a minha natureza. Meus amigos sabem que nesta época vou preparando as malas para o contato com a água, com a terra, com o sol, a chuva, a estrada. São nesses momentos que agradeço a com-paixão existente em mim, e que ela possa ser pulsante no ato de apaixonar-se por novas jornadas e desafios ao longo da vida. Então, lá vou eu comungar com a Terra, revolver minhas terras e torná-la saudável para os novos momentos e movimentos.
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GESTAÇÃO
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A terra está gritando em mim
E estou entranhado nela.
O terreiro foi varrido com o amarrado de gravetos
E as roupas já estão a quarar.
Meu avô afina o violão,
Enquanto vó brilha em prata das escamas do peixe.
No acalanto da música
Meus olhos se inundam
E lavam os quatro cantos da casa
Para o nascimento de meu pai.
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GOSTOSURA
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A moenda de pedra
E a mão calejada
Trabalham num contínuo movimento.
Uma no debulho da espiga,
A outra no seu trituro.
O farelo a cama do peixe.
E o espocar do óleo quente o anúncio.
Preciso correr até o armazém
Para comprar a farinha da terra
Que será salpicada sobre o arroz com feijão.
Em pequenos gestos da vida
Podemos descobrir o quão gostoso é compartilhar simplicidades.
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SINAIS
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Um anjo assoprou-lhe aos ouvidos:
Vá saudar sua vida
Sem se deixar prender
Pelas imobilidades rasteiras da culpa.
Foi atrás dos sinais.
Viveu todo gozo e toda dor
Feliz por estar vivo.
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SORTILÉGIO
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Foto: João Emílio Fernandes.
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Ao pisar na areia
Onde meus avós nasceram
Contaram-me que quando mãe me teve
Meu avô rogou ao mar
que me protegesse e me trouxesse sorte.
Sentir o amor inundando-me
Foi meu sortilégio.
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NOVEMBRO, 04/2017.
Quando nasci, minha Angra não era mais a das pedras "pé-de-moleque", nem dos antigos casarões, das palmeiras imperiais, dos morros verdes se debruçando sobre a cidade e o mar, e de todo o seu charme barroco. Minha terra ainda foi da época de ir à cachoeira em Monsuaba, dos piqueniques sob as amendoeiras da Praia Grande, de brincar com a tabatinga na Praia da Amizade, do pão bento guardado no pote da farinha, de ir à benzedeira, que ficava num grande charco onde hoje é o Parque das Palmeiras (naquela época muito comum para espantar um quebranto ou colocar uma espinhela caída no lugar), do senhorzinho que carregava a caixinha de São Benedito pelas ruas, o qual eu abaixava a cabeça para levar as três pancadinhas de proteção, entre tantas outras memórias. Uma Angra interiorana, sem a Rio-Santos, sem os grandes condomínios, sem as grandes empresas, das praias livres, sem a usina nuclear, sem tantos bairros e "tantos progressos". As janelas ainda se mantinham abertas para que a brisa da noite refrescasse o sono, os sinos repicavam para as procissões com suas irmandades e fé, das festas juninas da igreja, do Cine Araribóia, do armazém do Seu Mantegão, da padaria da Dona Alta e do mendigo Remijo. Foi nessa memória crianceira que eu trouxe mais algumas de minhas poesias, acrescidas de tais registros e fantasias.
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ILUMINURAS
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Carrego em mim
Impressões de tempo e lugar
Que espremem meu coração de saudades.
Passo minha mão no mar
Explodindo ardentias na água.
São as iluminuras de Deus.
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MARINHAS (para Carminha Cabral)
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Na praia da Chácara
Ficava o mercado de peixe,
Com sua arquitetura circular.
Os pescadores iam e viam
Em suas canoas coloridas,
Cheias de cavalas, vermelhos, namorados e xereletes.
Esse era o quintal
Da menininha coberta de sardas
Que trazia nas mãos as vísceras para a sua pescaria
Fazendo os urubus se alvoroçarem
No alto do céu.
A cena pueril e delicada
Era perfeita para uma marinha ser pintada.
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DAMIANA
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Lembrei-me de Damiana,
A rezadeira que quando criança
Mãe me levava para benzer.
Quebranto ou espinhela caída?
O meu guardado são as palavras
Ditas em sussurros
No meio daquele punhado de folhas
Varrendo o meu corpo.
Ao final, um copo d"água para aguar a vida,
Torná-la menos árida.
Já em casa, após o almoço,
Estou eu e pai sentados na porta da cozinha
A brincar com o osso da galinha.
Ele do lado direito, eu do esquerdo.
E no puxar, click.
Lembrei do barulhinho, era espinhela caída.
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LEMBRANÇA
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No catado da lembrança,
Minha cidade
Era a igraja da Matriz,
O armazém do Seu Mantegão,
a padaria da Dona Alta
E o cinema com os filmes do Mazzaropi.
Hoje, minha cidade cresceu.
Como os mais antigos dizem,
Aquela palavra que embaralha o pensamento,
Confunde os significados:
"O tal de em nome do progresso".
O que deitou asfalto sobre as ruas de pé-de-moleque,
Que fez dos sobrados
Arquiteturas de alumínio,
Que trocou a prosa
Pelo silêncio.
Mas cá dentro,
De vez em quando,
Faço alvoradas.
E cubro o largo da Matriz
Com folhas de mangueira
Para a procissão
De Nossa Senhora da Conceição.
OUTUBRO, 04/2017.
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Hoje minhas reminiscências buscaram a mãe de minha mãe. Foi minha avó materna que quando nasci me colocou na Irmandade de São Benedito e lá permaneci até o fim de sua memória. Cada vez que remexo meus escritos guardados, mais avivo minhas raízes e o gosto de sal do mar. Ela era a pele curtida do sol do Aventureiro, mesmo depois de sair de lá e com o tempo de mais uma outra vida. Recolhi duas poesias que falam de Vó Leonídia.
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MÃE DE MINHA MÃE
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No baú dos meus guardados
Encontrei as flores de chita
Que vó fazia com delicadeza
E os moldes com os quais
Depois cortava seus tecidos
Para costurar em sua velha máquina.
Vejo as mãos enrugadas da mãe de minha mãe.
Vejo seu rosto com os caminhos áridos que percorreu
Vejo os veios de água pura que lá ainda estão.
E assim vou me desenhando no tempo,
Descobrindo o movimento da vida.
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PROTETOR
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Ao nascer
Vó me deu aos braços
De Benedito.
Volto depois de anos
Ao livro Crucial
Onde está o segredo
Do seu bem-querer
Ao santo protetor
E ao pecador protegido.
Minha remissão
É ser pecador protetor
Das escritas de minha vida.

Foto: João Emílio Fernandez
Iniciei estes escritos no dia 25 de dezembro de 2023, mas tudo se inicia em 2019 com o AVC de meu pai. Quantas mudanças para mim e minha mãe, e principalmente para ele, meu pai. Era a vida se escancarando pra gente, como se ela não fizesse isso diariamente. Nesse dia tão significativo, carregado de simbolismo, precisei de decisões. A vida é coragem e me rasgo a cada momento criando as cicatrizes que me constroem. Como o carvalho, a sumaúma, o jatobá, o iroko, representações da ancestralidade, passeei pela minha infância e adolescência, a vida que vivi e construí em Angra, com a família de amigos que criei, com meu companheiro de vida e a família que também formei nos meus mais de 40 anos de Rio de Janeiro. Preciso da minha história para prosseguir. O alumiado está há muito sem os pensamentos se derramarem entre os teclados do computador e se organizassem em sua tela. E nesse vai e volta do tempo vou achando os caminhos. Depois de um tempo compreendendo e buscando a vida de meu pai e de minha mãe, chegamos à decisão de mais uma mudança. Dessa vez eles iriam para uma ILPI onde teriam a qualidade de vida que começava a desmoronar na atual situação. E assim foi, mais uma mudança transformando o novo espaço com significados e referências. E assim transcorreu esse novo momento de 2022, entre dias luminosos e outros mais outonais. Creio que o inverno também chegou, porque eu também senti frio. E numa dessas lufadas de vento minha mãe foi atrás. E ficamos eu e meu pai procurando o sol. Mas a chuva veio mais forte e inundou o bairro onde meu pai estava morando, nos levando novamente a enfrentar as tormentas. Cada qual, como náufragos, procurando uma bússola que nos norteasse para uma ilha ou um cais. Ao afundar nas águas caudalosas vi o menino com sua origem “peixe com banana”, que na infância se banhou na Praia da Chácara em frente ao Convento do Carmo, que fez piquenique na Praia Grande onde havia uma antiga fábrica de sardinhas, que conheceu o pequeno bar do Seu Luis Rosa, na Gipoia, frequentado pelos moradores da ilha e poucos moradores da cidade. Estou em 70 e poucos, em Angra. Sempre cito que minha mãe é do Aventureiro, que eu adoro. Sou “badejco”. Meu pai do Jussaral. Que encontro! E foi nesse mar de lembranças e histórias, que ontem, dia 26, meu pai veio pro Rio. Ele tão fincado em sua terra, apesar de ter morado em outras cidades, teria que plantar as raízes definitivamente em outro lugar. As vezes a vida pede que nos replantemos em outros solos, mas aquele vento frio e desordenado voltou através das instituições responsáveis para a sua transferência. Foi preciso chamar também o redemoinho, a ventania, para que o respeito a “antiga árvore do tempo”, de uma outra Angra, das memórias e de suas histórias não fosse mais sangrada. E assim, a partir do dia 26 de dezembro, ele está replantado, com as folhas caindo de seu pé a cada dia, os galhos de seu corpo mais retorcidos e o gorjeio em sua copa mais silencioso. Mas o seu fruto se mantém ali, ao lado, se decompondo com o tempo, esperando se tornar também uma grande árvore. Para você, meu pai!